A impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação

* Fabiano Tacachi Matte –  

Em recente decisão monocrática, no RE nº 352.940-4, o E. Ministro Carlos Velloso abonou a tese de que, com fulcro nos princípios constitucionais da isonomia e do direito a moradia prevista no art. 6º, caput, da Constituição Federal, em sua nova redação dada pela EC nº 26, a exceção que permite a penhora do bem de família do fiador em contrato de locação, prevista no art. 3, VII, da Lei. 8.009/90, é inconstitucional. Na decisão in casu julgou-se pela liberação do bem de família da constrição e a sucumbência da locadora[1].

Tal decisão vem servir de precedente diante de um posicionamento majoritário contrário ao aventado. Assim, até então, com raras exceções, primava-se pela penhorabilidade do bem de família em contrato de locação pelas alterações que a nova Lei de Locações (L. 8.245/91) trouxe à Lei do Bem de Família (L. 8.009/90), o que pode ser vislumbrado nos seguintes julgados:

LOCAÇÃO. FIANÇA. BEM DE FAMILIA. – PENHORABILIDADE. RESSALVA DO ART.3. VII DA LEI 8.009/1990, COM A ALTERAÇÃO DO ART. 82 DA LEI 8.245/1991. Decisão. POR UNANIMIDADE, CONHECER DO RECURSO E LHE NEGAR PROVIMENTO. (STJ – RESP 73449 – Proc. 1995.00.44146-2 – SP – QUINTA TURMA – Rel. JOSÉ DANTAS – DJ DATA: 05.05.1997, p.17070)

AGRAVO REGIMENTAL RECEBIDO COMO AGRAVO INTERNO. NEGATIVA DE SEGUIMENTO A APELAÇÃO. OBRIGAÇÃO DECORRENTE DE FIANÇA PRESTADA EM PACTO LOCATICIO. PENHORABILIDADE DO IMÓVEL RESIDÊNCIAL. ENTENDIMENTO PACIFICO NESTA CORTE E NO STJ. AGRAVO IMPROVIDO. (TJRS – AGR 70000727388 – 15 C.Cív. – REL. DES. MANUEL MARTINEZ LUCAS, J. 22.03.2000)

Neste sentido, Heitor Vitor Mendonça Sica advoga que pode ser refutada a afirmação de inconstitucionalidade, pois os princípios pleiteados, o da isonomia e do direito a moradia, não estariam em dissonância com a exceção permissiva pela penhorabilidade do bem de família em contrato de locação; sobre o primeiro o jurista labora sobre a diferenciação obrigacional que ocorre entre locatário e fiador, mas, no entanto, ele chega a uma situação que constata o surgimento de um gravame maior para o fiador, em contraste com o fim da fiança que é de ser um “contrato benéfico”, mas nada que daria azo a uma inconstitucionalidade. Sobre o segundo argumento, a norma do caput do art. 6º da CF é programática, e, portanto, carece de regulamentação, sem a qual não possui eficácia plena[2].

Por outro lado, é curial reconhecer que, atualmente, vislumbram-se situações em que ocorre o denominado conflito executivo[3], que nada mais é, que o conflito produzido entre a necessidade de se preservar a segurança jurídica e ao mesmo tempo de se dar o devido cuidado ao reclamo pela efetividade dos direitos, principalmente os direitos fundamentais[4]. Nestes termos, é profícuo para o alcance do desiderato proposto, a utilização das metanormas jurídicas; mesmo que apesar do referido RE não fazer menção a tal instrumento, benfazeja ferramenta é a proporcionalidade, que atua na tensão existente entre o direito de crédito do credor e o direito fundamental a moradia do devedor, em que este embricamento entre bens jurídicos no caso concreto pode ser resolvido pela proporcionalidade, que pelo exame da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, analisar-se-á a relação de causalidade entre meio e fim, buscando uma otimização, recaindo no devido sopesamento para o deslinde do conflito[5], e, que abstraia o máximo de efetividade das normas colocadas em exame. Não é outro, senão o alvitre de Gisele Santos, para quem:

“O processo de execução, por excelência, deve estar imbuído da máxima da proporcionalidade, pois que, verdadeiramente, é no interior dele que se concretiza o acesso à ordem jurídica justa, efetivando-se a mera declaração contida no julgado. Portanto, essa realidade somente pode existir se esse procedimento executivo estiver enraizado com o devido processo legal proporcional, na sua feição procedimental e substancial.”[6]

Nesta esteira, o direito a moradia consolidado na Carta Magna, em seu art. 6º[7] prevê que o referido é um direito social, que segundo o prestimoso escólio de José Afonso da Silva, constitui em duas faces, uma negativa, a qual “significa que o cidadão não pode ser privado de uma moradia nem impedido de conseguir uma, no que importa a abstenção do Estado e de terceiros”[8] e uma positiva, que “consiste no direito de obter uma moradia digna e adequada, revelando-se como um direito positivo de caráter prestacional, porque legitima a pretensão do seu titular à realização do direito por via de ação positiva do Estado”[9].

Outrossim, os direitos sociais tratam-se de direitos fundamentais[10], ou melhor, um direito fundamental de 2ª geração, portanto, possuindo incidência imediata nos termos do art. 5º, § 1º, CF. Deste modo, verifica-se que mesmo sem lei infraconstitucional que venha a regulamentar tais disposições, isto é, que haja uma intervenção legislativa, os direitos sociais, mesmo de cunho programático, já dimanam uma carga eficacial “comuns a todas as normas definidoras de direitos fundamentais, mesmo as que reclamam uma interpositio legislatoris (…)”[11], onde, desta maneira,

“a) Acarretam a revogação dos atos normativos anteriores e contrários ao conteúdo da norma definidora de direito fundamental e, por via de conseqüência, sua desaplicação, independente de uma declaração de inconstitucionalidade (…) d) Os direitos fundamentais prestacionais de cunho programático constituem parâmetro para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas (demais normas constitucionais e normas infraconstitucionais), já que contêm princípios, diretrizes e fins que condicionam, a atividade dos órgãos estatais e influenciam, neste sentido, toda a ordem jurídica”[12].

Por outro viés, é inegável que a Lei 8.009/90 pode (deve) ser lida com os olhos voltados ao preceituado no texto constitucional, que por conseqüência produzirá, a partir de uma interpretação sistemática, na qual “o sentido da norma é definido a partir de sua inserção no conjunto normativo”[13]. Não obstante, deve-se haver o respeito pelo sistema jurídico, e se este prevê como norma fundamental, que o direito a moradia encontra-se consagrado, como norma-princípio, deve-se impender que advindo qualquer lei que venha a inibir a eficácia deste direito, deve esta nova lei ser desaplicada, adotando, assim, um critério hermenêutico. Além do mais, na defesa dos direitos fundamentais consagrados na Constituição, em luminares palavras, leciona o professor gaúcho Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, verbis:

“Às vezes, mostra-se necessária a correção da lei pelo órgão judicial, com vistas à salvaguarda do predomínio do valor do direito fundamental na espécie em julgamento. Já não se cuida, então, de mera interpretação ‘conforme à Constituição’, mas de correção da própria lei, orientada pelas normas constitucionais e pela primazia de valor de determinados bens jurídicos dela deduzidos, mediante interpretação mais favorável aos direitos fundamentais.”[14]

Aliás, nesta inserção no conjunto normativo, deve-se reconhecer a dignidade humana (CF art. 1º III), como princípio a “imantar” o sistema jurídico, como observa o professor Ingo Wolfgang Sarlet:

 “(…) parece-nos já ter restado clarificado ao longo da exposição, que o reconhecimento da condição normativa da dignidade, assumindo de princípio (e até mesmo como regra) constitucional fundamental, não afasta o seu papel como valor fundamental para toda ordem jurídica (e não apenas para esta), mas, pelo contrário, outorga a este valor uma maior pretensão de eficácia e efetividade.”[15].

Assim sendo, pelo exame das ilações expostas, pode-se concluir que a interpretação que possibilita a penhora do bem de família do devedor em fiança de contrato de locação não é a única. Tal disposição deve ser colocada em contraste com o texto constitucional que preza pela dignidade humana e o direito a moradia (CF arts. 1º, III e 6º caput). Neste diapasão, considera inconstitucional a possibilidade de penhora, a Desembargadora (TJRS) Genacéia da Silva Alberton, donde é inconstitucional o dispositivo que excetua a impenhorabilidade do bem de família na hipótese de fiança em contrato de locação, por afrontar os princípios da isonomia, dignidade e o direito a moradia do fiador[16]. Ademais, também comunga desta tese, o Desembargador Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, do TJRS:

APELAÇÃO CÍVEL LOCAÇÃO. FIANÇA. PENHORA DO ÚNICO IMÓVEL QUE SERVE DE RESIDÊNCIA DO FIADOR. IMPOSSIBILIDADE. São garantias constitucionais fundamentais do cidadão e de sua família o direito de propriedade (CF/88, art. 5°, XXII) e o direito à moradia (CF art. 6°, `caput¿, na redação da EC 26/00), sendo que a Constituição, em sua axiologia, prestigia como valor fundamental a moradia dos cidadãos e de sua família, tanto que no ad. 183 concede o usucapião para quem detenha imóvel urbano nas condições que menciona. A lei deve ser interpretada e aplicada atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (LICC, art. 5°), o que certamente não estará sendo atendido se o fiador perder sua residência para atender débitos de aluguéis do afiançado em beneficio do credor que explora economicamente a propriedade imobiliária. Outra deve ser a solução para a viabilização do mercado de locação, seja pelos cuidados do locador ao aceitar o fiador com patrimônio suficiente para a garantia, seja pela definitiva implementação do seguro-fiança. O credor ou locador, ao contratar, deve examinar a situação patrimonial do fiador, pois seu é o risco. Apelação provida. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70001271766, PRIMEIRA CÂMARA ESPECIAL CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ADÃO SÉRGIO DO NASCIMENTO CASSIANO, JULGADO EM 20/06/2001)[17].

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[1] Como noticia o informativo eletrônico Espaço Vital de 27 de abril de 2005: “Inconstitucionalidade de artigo de lei federal afasta a penhora de imóvel familiar para o pagamento de fiança em locação”; editor Marco Antonio Birnfeld. Endereço eletrônico:  <http://www.espacovital.com.br/asmaisnovas27042005a.htm>

[2] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões polêmicas e atuais acerca da fiança locatícia. in A penhora e o bem de família do fiador da locação. coord. José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: RT, 2003. pp. 23/56. Defendendo, também, que o art. 6º, CF, (direito a moradia) por ser norma programática, para que gere efeitos no plano da realidade jurídica, faz-se mister a regulação própria e específica. (CRUZ e TUCCI, José Rogério. Penhora sobre bem do fiador de locação. in A penhora e o bem de família … pp. 15/19.)

[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao código de processo civil. coord. Ovídio A. Baptista da Silva. São Paulo: RT, 2003. v. VIII. p. 238.

[4] Sustenta Willis Santiago Guerra Filho que a Constituição também possui a natureza de uma lei processual, agasalhando “a fixação de certos modelos de conduta, pela atribuição de direitos, deveres e garantias fundamentais, onde se vai encontrar a orientação para saber a que se objetiva atingir com a organização delineada nas normas de procedimento.” (pp. 20/ 21). A busca dos valores fundamentais requer a intermediação de procedimentos, e estes mesmo aparecem “estabelecidos com respeito àqueles valores.” Daí, o processo aparece, então, como “resposta à exigência de racionalidade, que caracteriza o direito moderno.”. (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. in Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Willis Santiago Guerra Filho coord. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 21)

[5] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 104 et seq.

[6] GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004. pp. 129/130.

[7] “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (NR) (Redação dada pela EC 26, de 14.02.2000)

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21 ed rev e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 314.

[9] idem

[10] José Afonso da Silva com fulcro em Pérez Luño. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6º ed. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 151. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2 ed., rev e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 259. Ricardo Lobo Torres apud Genacéia da Silva Alberton. Impenhorabilidade de bem imóvel residencial do fiador. in A penhora e o bem de família … p. 127.

[11] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia …  p. 272.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia… pp. 272/273. negritos acrescentados.

[13] CUNHA, José Ricardo. Fundamentos axiológicos da hermenêutica jurídica. in Hermenêutica plural: possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos/ organizadores Carlos Eduardo de Abreu Boucault, José Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 328.

[14] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais. in Revista de Processo 113:16.

[15] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2 ed., rev., ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. pp. 75/76. José Afonso da Silva apoiado em Jorge Miranda, ressalta a “função ordenadora dos princípios fundamentais, bem como sua ação imediata, enquanto diretamente aplicáveis ou diretamente capazes de conformarem as relações político constitucionais, aditando, ainda, que a ‘ação imediata dos princípios  consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação, pois são eles que dão coerência geral ao sistema’”. (SILVA, José Afonso da. Curso … pp. 95/96.) Também, “É por força dos princípios constitucionais que os sistemas constitucionais alcançam a unidade de sentido e a valoração de sua ordem normativa”, no preenchimento do caso concreto “carente de solução normativa” (FIGUEIREDO, Sylvia Marlene de Castro. A Interpretação Constitucional como “Concretização” ou Método Hermenêutico Concretizante. in  Revista de Direito Constitucional e Internacional 127:16). Penso que cabe o princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição, trazida na lição do insigne prof. J.J. Gomes Canotilho. Entretanto, o princípio referido alcança somente as situações onde exista um espaço de decisão (=espaço de interpretação), nas palavras do prof. luso. Contudo, entendo que no momento em que a norma infraconstitucional não diz tudo o que deveria dizer, mesmo não havendo este “espaço”, esta deve ser interpretada conforme a Constituição, pois, do contrário, haveria uma inconstitucionalidade pela omissão. (Obra citada: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5 ed. Coimbra: Almedina, 2002. pp. 1212/1213.). Assim, “o elenco do art. 3º da Lei 8.009 comporta por si só interpretação restritiva, exatamente porque expõe exceções à regra geral, que é a da impenhorabilidade do bem destinado à moradia da família. Nessa linha, a ressalva, portanto a penhora, deve prevalecer somente quando, por meio dela, assegura-se um direito de relevância igual ou maior que aquele da moradia, o que se dá diante de crédito alimentar, trabalhista ou, ainda, quando da aquisição de bem com produto de ato ilícito. No caso da locação isso não se verifica, até porque se coloca como credor, na relação obrigacional, alguém que é somente um investidor.” (FORNACIARI JÚNIOR, Clito. O bem de família na execução da fiança. in A penhora e o bem de família … p. 102.)

[16] “CONSTITUCIONAL – CIVIL – PROCESSO CIVIL – PENHORA INCIDENTE SOBRE IMÓVEL RESIDENCIAL DE FIADOR EM CONTRATO DE LOCAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE – PROVIMENTO DO AGRAVO. 1. Com a promulgação da EC 26, de fevereiro de 2000, que modificou a redação do art. 6º da CF, incluindo a moradia no rol dos direitos sociais, derrogado fciou o inc. VII do art. 3º da Lei 8.009/90, introduzido pelo art. 82 da Lei 8.245/91, daí resultando a impossibilidade de penhora destinado à residência do fiador. 2. Agravo improvido. (TJDF, 4Tª T. Civ. AgIn 2000.00.2.003055-7, Rel. Des. Estevam Maia)” in (ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de bem imóvel residencial do fiador. in A penhora e o bem de família … p. 128.)

[17] No mesmo sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70000649350, PRIMEIRA CÂMARA ESPECIAL CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ADÃO SÉRGIO DO NASCIMENTO CASSIANO, JULGADO EM 28/03/2000.

 


 

Referência  Biográfica

FABIANO TACACHI MATTE  –  Acadêmico do 8º semestre do curso de direito da FEEVALE/RS. Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil – ABPC

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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