A ilegalidade e a inconstitucionalidade na obrigatoriedade da desistência de ações judiciais e processos administrativos para a inclusão no parcelamento especial do Simples Nacional

* Fernando Carlomagno

O Sistema Tributário Nacional é de uma complexidade notória, tendo sido editadas, nos últimos 19 anos, aproximadamente 236 mil normas tributárias.

Com o objetivo de suavizar esta complexidade, bem como tentar incentivar os micro e pequenos empresários, foi publicada, em 14 de dezembro de 2006, a Lei Complementar nº. 123/06, que instituiu o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, também conhecido como Simples Nacional ou Super Simples, substituindo a Lei nº. 9.317/96.

Essa nova lei consiste no tratamento tributário diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, que implica no recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, os seguintes tributos: PIS/Pasep, COFINS, IRPJ, CSLL, e dependendo da atividade do contribuinte que optar pelo sistema diferenciado, pode englobar o INSS patronal, o ISS, o IPI e o ICMS.

Além da precitada vantagem, deve-se ressaltar também que as empresas ficam dispensadas do pagamento das demais contribuições instituídas pela União, inclusive as contribuições para as entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, de que trata o art. 240 da Constituição Federal, e demais entidades de serviço social autônomo, não excluindo, entretanto, a incidência dos tributos dispostos no art. 13, §1º, da Lei Complementar nº. 123/06.

Outra vantagem estabelecida pela referida lei é o parcelamento especial de débitos existentes para o ingresso da empresa no sistema diferenciado, nos termos de seu art. 79, verbis: 

Art. 79. Será concedido, para ingresso no regime diferenciado e favorecido previsto nesta Lei Complementar, parcelamento, em até 120 (cento e vinte) parcelas mensais e sucessivas, dos débitos relativos aos impostos e contribuições referidos nos incisos I a VIII do caput do art. 13 desta Lei Complementar, de responsabilidade da microempresa ou empresa de pequeno porte e de seu titular ou sócio, (…). 

Esse parcelamento especial, no que tange o IRPJ, IPI, CSLL, COFINS, PIS/Pasep, Contribuição para a Seguridade Social e os débitos referentes ao regime de apuração segundo o sistema integrado de pagamento de tributos instituídos pelo Simples Federal (Lei nº. 9.317/96), é regulamentado genericamente pela Resolução CGSM nº. 4, de 30 de maio de 2007 e, especificamente, pelo Ato Normativo nº. 750/07, ambos da Receita Federal. Todavia, para a inclusão nesse parcelamento de débitos que estejam com a exigibilidade suspensa, esse ato normativo obriga o contribuinte a desistir expressamente e de forma irrevogável das impugnações ou dos recursos administrativos, dos embargos opostos em execuções fiscais ou de outros tipos de ações judiciais, bem como, cumulativamente, renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundam os referidos processos administrativos e ações judiciais, nos termos do art. 20, §1º, da Resolução nº. 4 e do art. 2º, caput, do ato normativo verbis: 

Art. 20. (…) 

§ 1º Os débitos objeto de litígio judicial ou administrativo somente serão alcançados pelo parcelamento de que trata o caput, no caso de o sujeito passivo desistir de forma irretratável da impugnação ou do recurso interposto, ou da ação judicial proposta, e cumulativamente renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundam os referidos processos administrativos e ações judiciais; 

Art. 2º Para a inclusão, nos parcelamentos de que trata esta Instrução Normativa, de débitos com exigibilidade suspensa nas hipóteses previstas nos incisos III a V do art. 151 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional (CTN), objeto de outras ações judiciais ou ainda em curso de embargos, quando administrados pela PGF, o sujeito passivo deverá desistir expressamente e de forma irrevogável, total ou parcialmente, (…), da impugnação, do recurso interposto, do embargo ou da ação judicial proposta e, cumulativamente, renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundamentam os referidos processos administrativos e ações judiciais. 

Essa desistência é claramente ilegal e inconstitucional. Vejamos. 

Pois bem, o principal efeito da suspensão do crédito tributário é o fato de impedir o início ou a continuação de sua cobrança por parte do Fisco. Essas causas estão estabelecidas no art. 151, do Código Tributário Nacional, sendo: a) moratória; b) depósito do montante integral; c) as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; d) a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial e; e) o parcelamento.

Quando a causa de suspensão se efetiva antes do lançamento do crédito, o Fisco o executa com o fim específico de evitar a decadência, ficando impedido, porém, todos os atos decorrentes do lançamento. Porém, quando sobrevém a causa suspensiva do crédito após seu lançamento, impede-se que seja levado a efeito o ato de inscrição em dívida ativa. Por fim, se a dívida já se encontra inscrita, a suspensão do crédito tributário impede a propositura da execução fiscal.

Ora, se os débitos cuja exigibilidade esteja suspensa não podem ser cobrados pela Fazenda, obrigar os contribuintes a desistir, de forma irrevogável, das impugnações, recursos administrativos, embargos opostos em execuções fiscais ou de outros tipos de ações, bem como a revogar os direitos que as fundam, são meios ardilosos utilizados pelo Fisco para obter o pagamento integral da dívida, caracterizando, assim, o ato de cobrança, violando o art. 151, do Código Tributário Nacional, demonstrando a primeira ilegalidade das normas supra.

Outro ponto da ilegalidade encontra-se no fato de não haver qualquer dispositivo na Lei Complementar n.º 123/06 que obrigue os contribuintes a desistirem de suas impugnações administrativas e judiciais, bem como aniquila o direito em que se fundam para aderirem ao parcelamento.

Sendo assim, é nítida a ilegalidade da obrigação de desistir de qualquer impugnação para aderir ao parcelamento.

A inconstitucionalidade reside na violação dos incisos XXXV e LV, ambos do art. 5º, da Constituição Federal, verbis: 

Art. 5º. (…) 

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

 (…) 

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Logo, de modo universal, é inconstitucional todas as determinações que impliquem a renúncia ao direito de demandar em juízo ou ao direito a processo administrativo.

O primeiro princípio constitucional agredido é o do livre acesso ao Judiciário. Isto porque, com a obrigatoriedade imposta pelo ato normativo ao contribuinte de desistir, de forma irrevogável, de embargos opostos em execuções fiscais ou de outros tipos de ações, lesa o direito pretendido pelo contribuinte.

Por exemplo, em 30 de novembro de 1989, foi publicada a Lei nº. 6.374/89, que majorou a alíquota do ICMS de 17% para 18% nas operações ou prestações internas ou naquelas que se tiverem iniciadas no exterior, com o fim específico de destinação da receita ao financiamento de programas habitacionais. A partir de então, esse dispositivo foi reiteradamente prorrogado por diversos diplomas legais, que sempre determinaram fim específico a sua receita, até o advento da Lei nº. 9.903/97, que apesar de manter a alíquota do ICMS em 18%, não a vinculou à qualquer destinação específica.

Devido a essa inconstitucionalidade latente, inúmeras empresas ingressaram com ações declaratórias, recolhendo o imposto com base nos 17%, discutindo-se o 1% restante. A Fazenda Estadual, porém, lançou a diferença de crédito, o inscreveu na dívida ativa e ingressou com a devida execução fiscal e, frise-se, devido a lentidão do sistema judiciário, muitas delas ainda encontram-se em trâmite.

Pois bem, para ingressar no parcelamento especial da Lei Complementar nº. 123/06, o contribuinte deve desistir dessas ações declaratórias que, reiteradamente, os Tribunais do Brasil têm declarado a inconstitucionalidade, obrigando o arquivamento das execuções fiscais. Sendo assim, o contribuinte tem seu direito lesado sem a devida apreciação do Poder Judiciário.

São violados, também, os princípios do contraditório, da ampla defesa e do direito ao processo administrativo, tendo em vista que os meios e recursos inerentes a esses princípios são suprimidos.

Caracterizados estão, portanto, os aspectos ilegais e inconstitucionais na obrigatoriedade da desistência de ações judiciais e processos administrativos para a inclusão do parcelamento especial do Simples Nacional.

O que acontece é que, mais uma vez, a Receita Federal criou obrigações que só podem ser instituídas mediante lei, agindo de forma ilegal, pois, as instruções normativas não podem instituir novas obrigações além das legalmente previstas, têm por função, única e tão somente, pormenorizar as obrigações previstas em lei, permitindo sua fiel execução.

É condenável a atitude da Receita Federal, pois viola a lei maior, devendo seus agentes lembrar que a melhor forma de se viver em democracia é respeitar os cidadãos e as normas legais, não podendo o Poder Público instituir, ilegalmente, normas ditatoriais que desonrem o Estado Democrático de Direito.

 


 

 

Fernando Carlomagno: Acadêmico da Faculdade de Direito Damásio de Jesus (SP).

 

REFERÊNCIA BIOGRÁFICA

Redação Prolegis
Redação Prolegishttp://prolegis.com.br
ISSN 1982-386X – Editor Responsável: Prof. Ms. Clovis Brasil Pereira.

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