* Gerivaldo Alves Neiva
Tinha tudo para ser uma tarde igual a tantas outras: audiências, despachos, sentenças, atender as partes, ou seja, a rotina do Juiz das 13 às 19 h, no Fórum Durval da Silva Pinto, em Conceição do Coité – Ba.
Ledo engano!
Ainda passava pelo corredor quando o Sub-Escrivão da Vara Criminal e também Comissário de Menores me apresenta um garoto de 12 anos, com aparência de 10, moreno, moreno mesmo, não negro, cabelos pretos e meio encaracolados, sorriso tímido e contido, dentes bonitos, falando baixinho como se fosse mais para si mesmo do que para os outros.
– Doutor, disse-me o serventuário, este garoto quer lhe conhecer.
– Venham ao meu gabinete, respondi de passagem.
Segui na frente pelo corredor pouco iluminado e me cansava antecipadamente ao pensar na rotina de trabalho que teria aquela tarde, mas a presença daquele garoto começa a me inquietar. Entraram em meu gabinete e ele se sentou em uma cadeira distante de mim, olhando perdido para o chão, enquanto o Comissário dizia:
– Doutor, estou com um probleminha. Este garoto apareceu com uma bicicleta em casa, mas não tinha dinheiro para comprar uma bicicleta. E o pior: passou uma semana fora de casa em outro povoado e agora o pai está aí fora, furioso, querendo que a gente descubra como ele conseguiu a bicicleta, mas ele não quer falar….
Gostei dele à primeira vista. Não sei a razão ainda. Talvez seu olhar. Sua timidez também me fazia lembrar da minha própria infância.
– Este é o Juiz. Se você não descobrir tudo e não se comportar, ele vai te mandar para Salvador. Pode ir falando…
Ele levantou um pouco a cabeça e me olhou com um olhar meio de medo e admiração. Eu, então, olhei para ele e tentei conversar:
– E aí? Tudo bem? Como é seu nome? Você queria conhecer o Juiz? Andou fazendo alguma traquinagem?
Ele me olhou agora mais admirado do que com medo, respondeu que estava tudo bem, que se chamava Paulinho e baixou os olhos novamente. Percebi um movimento em seus lábios como se estivesse contendo um choro…
Esta tarde não era mais rotineira. Percebi que estava diante de uma criança especial e seu olhar me deixava confuso. O que ele espera de mim? Que será que ele está pensando? Seu olhar também me fazia pensar: quem sou eu para ele? O que posso fazer por ele?
Pedi que o comissário saísse e ficamos alguns instantes em silêncio sem nos olharmos…. Não sei por que me lembrei de uma música: "existirmos: a que será que se destina?"
– Paulinho, sente mais aqui perto de mim.
Ele veio meio tímido ainda, mas não tinha mais a carinha de choro. Dá para ver um pouco de segurança e confiança em seu olhar.
– Quantos anos você tem?
– 12.
– Onde você mora?
– No Sossego.
– Que série você está estudando?
– A segunda.
– Como a segunda, se você já tem 12 anos? Perdeu algum ano?
– Não. Nunca perdi ano, mas não sei por que estou na segunda.
– Tá bom…
Ficamos mais um pouco em silencio e lembrei mais uma vez da minha infância. Como me comportaria diante de um Juiz? Era tão tímido que talvez fizesse xixi nas calças… A música não saía de minha cabeça: "pois quando tu me deste a rosa pequenina."
– Cadê seus pais?
– Tão aí fora.
– Bateram em você?
– Ainda não.
Ora, "ainda não" significa que poderá acontecer, pensei. Então, Paulinho está aqui, diante do Juiz, esperando uma condenação certa: ser mandado para Salvador ou apanhar do pai!
Um breve filme passou em minha cabeça: uma criança sendo levada aos empurrões e ouvindo gritos do pai. Um cinto sendo puxado, um olhar aflito, uma mão para o alto e um grito de dor… E a música insistente: "Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina."
Balancei rapidamente a cabeça para espantar os pensamentos e continuamos a conversa:
– Então, você tem uma bicicleta?
– Sim.
– Como você conseguiu?
Ele não ia falar. Não confiava no Juiz. Certamente, tinha medo de ser preso e de apanhar. Também, aquilo estava parecendo um interrogatório e uma confissão, mas precisava ser uma conversa.
Paulinho tinha apenas 12 anos e estava diante do Juiz enquanto seus pais lhe esperavam lá fora. Seria preso ou levaria uma surra dos pais, pensava. Era um menino, não era um homem. Essa música está me tirando a concentração: "Do menino infeliz não se nos ilumina."
– Paulinho, vamos fazer um acordo?
– Sim.
– Você quer ser meu amigo?
Ele levantou a cabeça e me olhou incrédulo, como se perguntasse: o que ele quer agora? Baixou novamente a cabeça, pensou alguns segundos e me olhou novamente com olhar carente:
– Quero.
Tive vontade de lhe abraçar para selar nossa amizade, mas a dureza da função não deixou. Meus braços não me obedeceram, apesar da vontade. Seus olhos, porém, não tinham mais medo e nem lágrimas… "Tampouco turva-se a lágrima nordestina."
– Então, já que somos amigos, vamos prometer falar só a verdade, certo?
– Tá bom.
– Da minha parte, prometo, como amigo, que nossa conversa vai ficar entre nós e não contarei a ninguém o que nós conversamos.
– Nem a meu pai?
– Nem a seu pai e nem a ninguém.
Sim, mas eu podia cumprir este acordo? E se ele tivesse, de fato, cometido alguma infração para ter a bicicleta? Como é que eu iria me sair dessa? E o pior: nós éramos amigos agora e eu não podia mentir. Estava numa enrascada… "Apenas a matéria vida era tão fina."
– Minha mãe sabe, mas meu pai, não! Se ele souber, me bate. Minha mãe não bate.
Mãe é tudo igual mesmo. Vive para a cria. Protege até do pai. É sempre cúmplice dos filhos.
Ficamos novamente em silêncio e eu não conseguia lhe perguntar mais nada. Estava envolvido em minhas lembranças, pensava em meus filhos e em meu pai… Não era mais autoridade, não era mais Juiz de Direito e meus quase 20 anos de magistratura não significavam mais nada. "E éramos olharmo-nos intacta retina." Ele entendeu que meus olhos esperavam sua resposta.
– Eu sempre quis ter uma bicicleta, mas meu pai não podia comprar. Os meninos todos tinham uma bicicleta, mas eu não. Eu sonhava rodando de bicicleta. Então, ia passado na frente da casa de um homem, vi que a porta estava aberta e resolvi entrar. Procurei no guarda-roupa e achei um dinheiro. Saí correndo e comprei uma bicicleta na mão de um rapaz que tem uma oficina de consertar bicicleta. Rodei, rodei e fui parar em um lugar que mora minhas tias. Andava de bicicleta o dia todo, dormia e comia na casa delas até que resolvi voltar e meu pai me trouxe para o Juiz. Antes, contei a minha mãe onde peguei o dinheiro, mas o rapaz não morava mais na casa. Então, não deu para devolver o dinheiro e eu queria ficar com minha bicicleta. O Senhor deixa?
Não sei por que a vida tem me deixado, ultimamente, nesta situação: entre a cruz e a espada. Aquele "o senhor deixa?" me deixou completamente atordoado. Como deixar, se a bicicleta foi comprada com dinheiro que não era dele? Como não deixar, se a bicicleta era seu sonho e não havia a quem devolver o dinheiro?
– Paulinho, vamos fazer um novo acordo?
– Vamos.
– Seguinte: você vai ter sua bicicleta, mas precisa prometer algumas coisas, certo?
– Certo.
– Primeiro, a gente precisa procurar o dono da casa que você pegou o dinheiro, depois precisa devolver o dinheiro dele e devolver a bicicleta ao rapaz da oficina…
– E minha bicicleta? Vou ficar sem ela?
– Calma. Vamos pensar em uma saída… Olhe, vamos fazer assim: você deixa a bicicleta comigo e volta prá casa com seus pais e vamos dizer a eles que nós acertamos entre nós dois o que fazer com a bicicleta. Aí, você vai prometer que vai estudar, passar de ano, respeitar seus pais e sua professora, não dormir mais fora de casa e não fazer mais este tipo de traquinagem, certo?
– Certo. Mas e minha bicicleta?
– Primeiro, você tem que prometer o que estou lhe pedindo. Promete?
– Prometo, mas também quero minha bicicleta.
– Bom, essa bicicleta vai ficar aqui, mas se você passar de ano e se comportar direitinho eu consigo outra bicicleta prá você, certo?
– Tá bom. Vou voltar com meu boletim passado de ano e vou ganhar uma bicicleta?
– Isso mesmo. Combinado? Bate aqui!
Saímos do gabinete, apresentei meu novo amigo à Dra. Suzana Monteiro, Promotora de Justiça, que inicialmente deu conselhos severos a meu amigo, mas depois também foi vítima de seu olhar pedinte e lhe dirigiu palavras de carinho e afeto. Acordo Fechado. Sem nada escrito. Palavras, apenas.
Encontrei seu pai esperando no cartório e lhe disse que tinha resolvido tudo com Paulinho: ele tinha me emprestado a bicicleta e seria devolvida se ele passasse de ano e se comportasse direito. O pai me olhou incrédulo pediu para que eu repetisse. Expliquei mais vez o ocorrido e me despedi de Paulinho com um cafuné na cabeça e uma piscada de olho de cumplicidade com sua mãe.
Bom, estamos em setembro e estou ansioso que o ano acabe.
Voltei ao meu gabinete, para a dura realidade da vida de um Juiz: procurar a casa que Paulinho me deixou o endereço, mandar intimar o dono da oficina de bicicleta…. mas a música continuava em minha cabeça:
"Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina."<!–[if !supportFootnotes]–>[1]<!–[endif]–>
REFERÊNCIA BIOGRÁFICA
Gerivaldo Alves Neiva: Juiz de Direito de Conceição do Coité (BA), 19 de setembro de 2008. E-mail: gerivaldo_neiva@yahoo.com.br – www.gerivaldoneiva.blogspot.com
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Este artigo é uma colaboração do Dr. Nehemias Domingos de Melo, e se refere a caso concreto (só nome do Paulinho é fictício), cuja decisão, publicamos para uma reflexão sobre o cotidiano, pois é permeada de sensibilidade e humanidade.