Algumas considerações sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica – aplicação da regra do Art. 50 do código civil.

 

Autor: Professor Reinaldo Monteiro

Não há que confundir pessoa natural com pessoa jurídica de direito privado. A primeira decorre de um fato natural, que é o nascimento com vida. A segunda surgiu do comando legislativo. São as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada (Art. 44 do código civil). Não obstante nascer da vontade humana adquire personalidade jurídica que a individualiza, se distinguindo das pessoas que a criaram. A personalidade jurídica da pessoa jurídica não é um fato natural. É alcançada com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo. Todas as modificações que vier a atingir o ato constitutivo devem ser levadas à averbação (Art. 45 do código civil).

Porém, é importante destacar que a lei assegura existência jurídica às sociedades desprovidas de personalidade jurídica, como é o caso da sociedade em comum e da sociedade em conta de participação. Enquanto a primeira tem caráter temporário, transitório, pendente da inscrição dos atos constitutivos (Art. 986 do código civil) a segunda, jamais adquirirá personalidade jurídica, ainda que ocorra a inscrição dos atos constitutivos (Art. 993 do código civil). Será sempre sociedade despersonificada.

As sociedades e as empresas individuais de responsabilidade limitada são sempre representadas pelas pessoas naturais, com poderes específicos de representação. É condição “sinequa non” a indicação do modo como se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente (Artigo 46, III Código Civil).

Atento a possibilidade de desvirtuamento da pessoa jurídica (entendendo como a práticade atos, para fins escusos e de interesse exclusivo e particular dos sócios), adoutrina desenvolveu a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, que, posteriormente foi agasalhadapelo ordenamento jurídico brasileiro e vem sendo aprimorada por inserções legislativas.

 

Art. 50 do código civil.

 

Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

 

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

A redação do Artigo 50 do código civil, guarda semelhança com a descrita no Art. 28 do código de defesa do consumidor.

 

Art. 28 do código de defesa do consumidor.

O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A desconsideração da personalidade jurídica é uma forma de enquadrar, limitar e coibir o uso indevido da pessoa jurídica, mormente, em prejuízo de terceiros. Impõe aos sócios e administradores que,observem no cumprimento de suas obrigações para com a pessoa jurídica, os princípios da separação patrimonial – imprescindível para a saúde financeira da pessoa jurídica – e da probidade.

A limitação de responsabilidade atribuída aos sócios na adoção do modelo societário, por exemplo, da sociedade limitada possui os seus contornos definidos na limitação da responsabilidade pelas obrigações sociais, significando que os sócios não respondem com seus patrimônios pessoais pelas dívidas que a sociedade vier a contrair, dentro da normalidade do exercício de gestão.

A desconsideração é ato excepcional. Trata-se de exceção ao princípio da responsabilidade limitada dos sócios, decorrente da modalidade societária escolhida. A sua aplicação está limitada pelos contornos trazidos pelo legislador. De fato, as regras dos Artigos 50 do Código Civil e 28 do Código de Defesa do Consumidor autorizam o Juiz retirar o privilégio da autonomia patrimonial e atingir o patrimônio pessoal dos sócios e dos administradores para a satisfação dos direitos de terceiros que foram prejudicados com os atos que beneficiaram direta ou indiretamente os sócios e/ou administradores.

 

Convém salientar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não visa destruir ou questionar o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade da dos seus sócios. Trata-se de medida excepcional que é aplicada nos contornos da lei civil (artigo 50 CC) ou do direito consumerista (artigo 28 do CDC).

A aplicação da teoria exige a presença de um dos dois elementos: desvio de finalidade, constatada pela prática de atos distintos ao objeto social, trazendo prejuízo a terceiros; e a confusão patrimonial, materializada pela impossibilidade de se saber o que pertence ao sócio e o que é da sociedade.

Acrescente a posição esclarecedora do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 279273/SP , de 04/12/2003:

“A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).”

A desconsideração da personalidade jurídica importa na retirada momentânea da autonomia patrimonial da sociedade, para estender os efeitos de suas obrigações aos bens particulares de seus sócios.

O juiz não tem competência para decretar ou decidir pela dissolução, total ou parcial da pessoa jurídica, nos casos de fraude relativa à autonomia patrimonial e sim decretar a desconsideração da personalidade jurídica, na forma prevista no art. 50 do Código Civil ou art. 28 do Código de defesa do consumidor, em atendimento ao requerimento da parte prejudicada pelo desvio financeiro ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), apreciando o RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.CPC/2015. PROCEDIMENTO PARA DECLARAÇÃO. REQUISITOS PARA A INSTAURAÇÃO. OBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE DIREITO MATERIAL.DESCONSIDERAÇÃO COM BASE NO ART.50 DO CC/2002. ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESVIO DE FINALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR. DESNECESSIDADE DE SUA COMPROVAÇÃO, assim se posicionou:

1. A desconsideração da personalidade jurídica não visa à sua anulação, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem, com a declaração de sua ineficácia para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, incólume para seus outros fins legítimos.

2. O CPC/2015 inovou no assunto prevendo e regulamentando procedimento próprio para a operacionalização do instituto de inquestionável relevância social e instrumental, que colabora com a recuperação de crédito, combate à fraude, fortalecendo a segurança do mercado, em razão do acréscimo de garantias aos credores, apresentando como modalidade de intervenção de terceiros (arts. 133 a 137) 3. Nos termos do novo regramento, o pedido de desconsideração não inaugura ação autônoma, mas se instaura incidentalmente, podendo ter início nas fases de conhecimento, cumprimento de sentença e executiva, opção, inclusive, há muito admitida pela jurisprudência, tendo a normatização empreendida pelo novo diploma o mérito de revestir de segurança jurídica a questão. 4. Os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica continuam a ser estabelecidos por normas de direito material, cuidando o diploma processual tão somente da disciplina do procedimento. Assim, os requisitos da desconsideração variarão de acordo com a natureza da causa, seguindo-se, entretanto, em todos os casos, o rito procedimental proposto pelo diploma processual. 6. Nas causas em que a relação jurídica subjacente ao processo for cível-empresarial, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica será regulada pelo art. 50 do Código Civil, nos casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. 7. A inexistência ou não localização de bens da pessoa jurídica não é condição para a instauração do procedimento que objetiva a desconsideração, por não ser sequer requisito para aquela declaração, já que imprescindível a demonstração específica da prática objetiva de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. 8. Recurso especial provido.

 

REINALDO MONTEIRO

Reinaldo Monteiro, advogado, especializados em direito empresarial. Atua na área coorporativa. Professor universitário de direito civil e empresarial.

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